Memórias da aldeia onde vivi

Eu com 9 anos

Hoje é o dia do meu aniversário. Como me apetecia fazer algo diferente, decidi visitar a aldeia onde vivi até aos 18 anos. Há já algum tempo que não ia lá, por isso notei muitas diferenças. Casas que já não pertenciam aos mesmos donos, estradas alcatroadas e largas, semáforos nos cruzamentos principais, jardins novos, praças maiores e mais bonitas do que aquelas que existiam no meu tempo, a igreja pintada de fresco, terrenos que deram lugar a ruas novas e muitos rostos de velhos que encontrei aqui e ali nos bancos de jardim.


Sentei-me para tomar café na minha confeitaria preferida. Aquele sol de outono batia suavemente na esplanada. Deixei-me ficar por ali uns tempos, a apreciar o vai e vêm das ruas e das pessoas. Algo que nunca fazia quando vivia ali, talvez porque era nova demais para apreciar os pormenores da vida a passar. Não reconheci a maioria dos rostos que vi. E isso era mais do que natural. Vivo na cidade há mais anos do que aqueles que gastei nesta aldeia. Nem me tinha apercebido dessas contas. Mas sinto sempre que o meu coração e as minhas raízes estão por cá. Parte daquilo que sou devo-o a este lugar e muitas das lembranças que carrego têm ali a sua história, nesta aldeia pequena e tranquila. O meu gosto por festas, arraiais, romarias, luzes, concertinas e cantares ao desafio, tem origem na minha alma minhota.


Enquanto estes pensamentos se cruzavam, perguntei-me por onde andaria a Rosa e o António, duas figuras típicas da terra, de quem eu tinha medo quando era pequena. Aposto que se ouvires esta história até ao fim, vais perceber que na tua terra também existem pessoas assim.


Lembro-me da sua existência, a partir do momento em que comecei a prestar atenção aquilo que me rodeava, pois até esse dia essas pessoas eram como se não existissem no meu mundo, ainda tão pequenino.


Conheci a Rosa quando ia na rua com a minha mãe. Nunca tinha visto ninguém tão sujo, de cabelo tão enriçado e de olhar enrugado, pele queimada pelo sol, e um andar baloiçado por causa dos imensos sacos de roupa que levava nas mãos. Calçava uns sapatos muito velhos e grandes demais para os seus pés, tal como a roupa que não tinha sido feita para o seu tamanho. Ouvia-a cantar melodias que só ela conhecia, no seu modo desajeitado e tosco.


Paguei a conta e fui dar um passeio de carro. Vi algumas lojas de sempre, outras que nem sei repetir o nome. Lugares novos, com histórias novas, das quais provavelmente nunca farei parte. Passei pelo rio onde ia com os meus amigos. E lembrei-me do dia em que me roubaram a bicicleta e tive de voltar a casa a pé. Anos mais tarde, encontraria a bicicleta nas mãos de um morador lá da aldeia. Devolveu-ma sem qualquer problema, até porque a meu lado estava o meu pai. Já adulta, acabaria por vender a bicicleta, quando olhei para ela e vi que estava cheia de teias de aranha.


Mais à frente encontrei a piscina municipal, construída num descampado onde eu tantas vezes joguei à bola. Mal eu sabia que um dia iria ser aquilo que via neste momento. Ao olhar para ali, quase conseguia ouvir os nossos berros e o barulho da bola a ir pelo ar.


Depois encontrei a minha antiga escola, com uma parte da fachada ainda em obras, escondendo restos de um passado onde fui tão feliz. Ao olhar para ela, recuperei velhas memórias, amizades perdidas, professores de quem não gostei e outros que não esquecerei, amores que se alimentavam de cartas e recadinhos em papel, recantos que foram palco de grandes histórias…


Minutos mais tarde estava em frente à discoteca da aldeia, onde passava as matinés de domingo. Foi ali que conheci o meu primeiro amor, foi também ali que o perdi. Pelos vistos gostava mais das morenas. Nunca eu imaginaria que anos mais tarde, voltaria àquele espaço, para organizar festas que iriam juntar dinheiro para a romaria da aldeia.


As saudades conduziram-me a casa do meu tio Zé, com quem sempre tive uma relação muito especial. Achei-o abatido, mais pequeno e de voz apagada. Na verdade, não sei o que esperava de alguém que já se encontra perto dos 90. Acho que nunca esperamos que as pessoas que amámos envelheçam, porque sabemos qual é o passo seguinte.


Perguntei-lhe pelas gentes que não encontrei, pelas lojas que fecharam, pelas casas de portas e janelas cerradas. Fiquei triste com o que ouvi. Moradas cujos donos já partiram. Os filhos, que saíram da terra, tal como eu, não voltariam. A história daquelas famílias, naquelas casas grandes de jardins verdes e flores de perder de vista, ficaria por ali. Tal como a casa dos meus avós que eu, inocentemente, acharia que ficaria para a família. Afinal, muito tempo depois, acabaria por ser vendida a um vizinho muito mal-encarado, cujo maior passatempo era estar sozinho.


- E a Rosa, tio? Que é feito dela?

- A Rosa morreu há dois anos, tal e qual como provavelmente escolheria morrer, se nos fosse dada essa oportunidade. Foi encontrada morta junto ao riacho onde costumava lavar o corpo velho, deitada na relva verde, ao som de sapos e grilos, com a lua a fazer-lhe de manta.


Aquela mulher, toda ela feita de histórias, toda ela liberdade, sem estar presa a paredes, gastos ou rotinas, vivia na rua. Desligada da família e de todo o tipo de amor, parecia ter como único bem, as roupas que trazia nos sacos, oferecidas por este e aquele, onde misturava restos de pão e comida.


Lembro-me que um dia a minha mãe, talvez na tentativa que eu percebesse que a Rosa era inofensiva, me deu uma moeda para lhe entregar. Eu aproximei-me, medrosa, e quando a coloquei no bolso da saia, ela agradeceu, sorrindo, mostrando os dois únicos dentes que trazia na boca.


Despedi-me do tio Zé e fui até casa. A casa onde vivi até aos 18 anos e onde ia aos fins-de-semana durante a faculdade. Tenho saudades do alvoroço da vida ali, da alegria contagiante do meu pai, dos cozinhados da minha mãe, das rabugices do meu irmão, dos cães e gatos que passeavam pela casa como se fossem os seus verdadeiros donos. Mas a vida nas casas acaba sempre por adormecer, para dar lugar às histórias de outras famílias, que terão outras memórias, e um dia terão as mesmas saudades que eu experimento agora.


Fiquei na casa durante duas semanas, as semanas mais longas da minha vida. O silêncio fazia parar o tempo, e o tempo parecia ter-se esquecido daquele lar. Um lar sem alma, agora. Que via, de dia para dia, cada memória escapar pelas frinchas das janelas ao encontro das ervas trepadeiras que abafavam o sol nas paredes.

Mal eu sabia que, dias mais tarde, teria mais memórias para chorar. O meu tio Zé acabaria por morrer. Sentiu-se mal, levaram-no ao hospital, mas nada havia a fazer. O seu coração velho e sem uso, pois nunca se casou, acabaria por se apagar. O meu tio Zé também me deixava.


Voltei para a cidade convencida que não tinha mais motivos para regressar à minha aldeia, onde as minhas histórias não se iriam repetir, onde não iria construir mais memórias, onde os rostos não me iriam abraçar como outrora, onde nada seria como era.


Uns dias mais tarde, quando já estaria de volta à rotina louca da cidade, e já esquecida dos dias na aldeia e da dor que veio agarrada a mim, recebo um telefonema da vizinha dos meus pais. Uma amiga de infância que se deixou vencer pela vida pacata que sempre levou por lá. Nesse telefonema falaríamos de tudo e de nada. Às vezes ouviríamos uns silêncios pausados, mas que rapidamente dariam lugar às novidades tristes e outras boas. Lembram-se de vos ter falado do António? Pois bem, vim a saber que tinha falecido. Aquela criatura a quem nunca decifrei uma só palavra, apesar de se ouvir bem de longe a sua voz, aquela criatura que, fizesse frio ou calor, nunca usava meias, vestia sempre fatos, a maioria sem cor, de tão sujos que estavam. Aquela criatura que às vezes vagueava perdido de bêbado pelas ruas, que acumulava histórias com a mesma velocidade com que um escritor as escreve… Aquela criatura que passava horas sentado no banco em frente a casa dos meus pais, tinha falecido.


Pedaços da minha existência que se afastam. Pessoas que não víamos há anos, mas que quando sabemos mortas, sentimos que algo dentro de nós também se apaga, como se pouco a pouco o livro da nossa vida fosse perdendo folhas, uma história de vida, que vai perdendo os seus personagens.


Agora, estou aqui sentada à janela da minha sala. As lâmpadas estão apagadas, mas o luar que se vê lá de fora inunda o espaço de luz. Deveria pegar no telefone e convidar alguém para um café, mas a minha companhia hoje não levaria alegria a ninguém. Se eu adivinhasse que aquele seria o último dia em que os meus olhos se abririam, que as minhas mãos folheariam um livro, que a minha boca se abriria para engolir um gole de vinho, talvez tivesse ligado a alguém…


Nota: Este texto relata acontecimentos reais, que se misturam com fição.


Carina Novo


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